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A Loucura Infantil como Espelho do Meio: Reflexões Psicanalíticas a partir de Maud Mannoni

  • Foto do escritor: Ana Elisa Gonçalves Bortolin
    Ana Elisa Gonçalves Bortolin
  • 11 de ago.
  • 4 min de leitura

1. Introdução



A frase de Maud Mannoni, psicanalista franco-belga e uma das vozes mais influentes na interface entre psicanálise, educação e saúde mental infantil, traz uma afirmação tão impactante quanto complexa: a loucura de uma criança nunca surge de forma isolada, mas como resposta à desordem, ao excesso ou à violência psíquica presente no seu ambiente.


Essa perspectiva desloca o olhar da criança como “portadora de um distúrbio” para o contexto relacional em que ela está inserida. Nesse cenário, a dinâmica familiar, social e institucional participa ativamente da formação e, por vezes, da deformação de sua vida psíquica.





2. O que Mannoni quis dizer



Ao afirmar que a loucura de uma criança é sempre a resposta à loucura do meio que a cerca, Mannoni critica leituras reducionistas que isolam o sofrimento infantil em diagnósticos fechados, sem considerar a função que esse sofrimento cumpre no sistema familiar.


Para ela, sintomas graves na infância — como delírios, comportamentos autodestrutivos, mutismo, agitação extrema ou recusa escolar persistente — devem ser compreendidos como linguagem, e não apenas como disfunções neurológicas ou distúrbios isolados. Essa linguagem denuncia, de modo indireto, uma falha no ambiente de sustentação emocional, conceito que dialoga com a ideia de holding de Winnicott (WINNICOTT, 1965).


No pensamento de Mannoni, a criança frequentemente expressa, de forma dramática, um conflito ou impossibilidade de simbolização que pertence à família ou ao meio em que vive. Assim, ela não é “doente” no sentido de um organismo que falha sozinho, mas porta-voz de um mal-estar coletivo.





3. Fundamentos teóricos



Essa visão encontra eco em Freud, quando ele reconhece que os sintomas neuróticos têm função comunicativa e estão ligados a histórias de desejo, culpa e conflito familiar (FREUD, 1905/2016). Melanie Klein acrescenta que a criança introjeta, desde cedo, objetos bons e maus derivados das figuras parentais, e que o ambiente emocional influencia diretamente a constituição desses objetos internos (KLEIN, 1946/1991).


Winnicott, por sua vez, sustenta que, quando o ambiente falha de forma grave e persistente, a criança desenvolve defesas radicais, incluindo formas de retraimento ou a formação de um “falso self”, para sobreviver psiquicamente (WINNICOTT, 1960).


Mannoni amplia essa leitura ao afirmar que, em muitos casos, o sintoma infantil é a encarnação da patologia do meio, uma forma de ato-resposta inconsciente.





4. Na prática clínica e no manejo



Na clínica psicanalítica com crianças, essa compreensão exige que o analista escute para além do sintoma. O manejo técnico pode envolver:


  • Entrevistas com os pais para investigar as representações inconscientes que eles têm da criança, como, por exemplo, se ela é vista como frágil, culpada ou responsável por salvar conflitos conjugais.

  • Observação do discurso familiar para compreender como se fala da criança na sua ausência, quais expectativas são projetadas nela e quais segredos circulam veladamente.

  • Análise da função do sintoma, perguntando-se o que o comportamento da criança mantém no sistema familiar, como no caso de um filho hiperativo que impede a separação dos pais, pois ambos precisam se unir para “controlá-lo”.



Um exemplo clínico: uma menina de nove anos apresenta crises de pânico diárias. Ao investigar o contexto, percebe-se que a mãe vive um estado depressivo grave e o pai tem surtos de agressividade verbal. As crises de pânico da criança funcionam como um sinal de alarme que força os pais a se mobilizarem juntos, interrompendo as brigas e “congelando” o clima familiar. Nesse sentido, sua “loucura” é um ato terapêutico inconsciente para preservar o núcleo familiar, mesmo que isso comprometa o próprio equilíbrio.





5. Implicações éticas e terapêuticas



Partir dessa concepção implica não patologizar a criança isoladamente. O tratamento passa a incluir, sempre que possível, um trabalho com o meio, seja por meio de acompanhamento familiar, psicoeducação parental ou articulação com a escola e outros cuidadores.


Ignorar o ambiente, nesse paradigma, significa perder a chave para compreender e transformar o sintoma.


É essencial sustentar, no manejo clínico, uma postura ética que não culpabilize os pais, mas que os convide a reconhecer seus próprios impasses e possibilidades de mudança. Isso evita retraumatizações e abre caminho para um trabalho conjunto mais efetivo.





6. Conclusão



A frase de Maud Mannoni é um convite à humildade clínica. A psicanálise da criança nunca é apenas sobre a criança, mas também sobre o laço que ela mantém com seu meio.


Compreender que a “loucura” infantil pode ser resposta e não origem do conflito é fundamental para qualquer terapeuta que trabalhe com a infância. Essa perspectiva amplia o horizonte do tratamento e nos lembra que, no campo do sofrimento psíquico, ninguém adoece sozinho.




Referências

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: FREUD, Sigmund. Obras completas, v. 6. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

KLEIN, Melanie. Notas sobre alguns mecanismos esquizoides (1946). In: KLEIN, Melanie. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago, 1991.

MANNONI, Maud. A criança, sua “doença” e os outros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

WINNICOTT, Donald W. O conceito de falso self (1960). In: WINNICOTT, Donald W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983.

WINNICOTT, Donald W. O ambiente e o desenvolvimento infantil (1965). Porto Alegre: Artmed, 1983.

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