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A inveja de quem poderíamos ter sido: reflexões psicanalíticas

  • Foto do escritor: Ana Elisa Gonçalves Bortolin
    Ana Elisa Gonçalves Bortolin
  • 4 de set.
  • 3 min de leitura

Introdução



Quem nunca se pegou pensando na vida que poderia ter tido? Nos sonhos que ficaram pelo caminho ou na pessoa que gostaríamos de ter sido? Esse sentimento aparece de forma bem-humorada na charge em que um paciente diz ao analista: “Sinto a maior inveja de quem eu poderia ter sido!”.


Apesar do tom cômico, a frase traduz uma dor muito real: a inveja voltada para dentro, não em relação ao outro, mas em relação a uma versão idealizada de nós mesmos. A psicanálise nos oferece instrumentos preciosos para compreender esse conflito e encontrar um caminho possível de elaboração.





O Ideal do Eu em Freud



Em 1914, Freud introduziu o conceito de Ideal do Eu (Ichideal) no texto Introdução ao narcisismo. Trata-se de uma instância psíquica que representa o modelo de perfeição ao qual cada sujeito se compara. Esse ideal pode vir da cultura, da família, da sociedade ou mesmo das próprias fantasias de completude.


Quando o eu real se distancia em excesso desse ideal, o sujeito é tomado por sentimentos de insuficiência, vergonha e, como no caso da charge, inveja da própria versão idealizada. O eu se transforma em juiz e ao mesmo tempo réu, prisioneiro de um parâmetro impossível de ser atingido (FREUD, 1914/2010).





A inveja em Melanie Klein



Melanie Klein, em Inveja e gratidão (1957), descreveu a inveja como um afeto doloroso diante do que sentimos faltar em nós e que percebemos no outro. A inveja pode corroer a capacidade de amar e destruir a gratidão.


Na situação representada na imagem, a inveja não se dirige a outra pessoa, mas sim a uma versão imaginária do próprio sujeito. O indivíduo se divide internamente: uma parte inveja a outra. Essa cisão gera sofrimento, pois cria um movimento constante de comparação com algo inalcançável (KLEIN, 1957/1991).





Dimensão clínica: o sofrimento da comparação interna



Na clínica psicanalítica, esse tipo de fala revela camadas profundas do sujeito:


  • Ideais parentais rígidos: quando a família projeta expectativas de sucesso, perfeição ou obediência.

  • Sonhos abandonados: desejos pessoais que foram sufocados por circunstâncias externas ou internas.

  • Fracasso subjetivo: sentimento de nunca estar à altura do próprio ideal.



O paciente não sofre apenas pelo que os outros esperam dele, mas pela cobrança incessante que ele mesmo reproduz.





Transformando a inveja em elaboração



A psicanálise não busca eliminar o Ideal do Eu — ele é parte constitutiva da vida psíquica. O trabalho analítico consiste em ajudar o sujeito a:


  • Reconhecer seus limites reais, sem se sentir diminuído por eles.

  • Reaproximar-se do desejo verdadeiro, distinguindo-o das expectativas impostas.

  • Elaborar a inveja para transformá-la em força criativa, reconciliando-se com a própria história.



Esse movimento é libertador porque permite que a pessoa pare de se comparar com uma versão impossível de si mesma e comece a viver de forma mais autêntica e menos punitiva.





Conclusão



A inveja de quem poderíamos ter sido é uma dor silenciosa e comum. Ela nasce do conflito entre o eu real e o ideal do eu. Se não elaborada, pode paralisar e alimentar ressentimento.


A psicanálise oferece um espaço de escuta em que essa dor pode ser compreendida e ressignificada. Afinal, como lembra a clínica, não precisamos ser o que poderíamos ter sido. O verdadeiro desafio é descobrir quem podemos ser hoje, com autenticidade, desejo e menos cobrança.





Referências



FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo (1914). In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2010. v. XIV.


KLEIN, Melanie. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago, 1991.

 
 
 

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