Falar de Amor na Psicanálise: Lacan e o Coração da Experiência Analítica
- Ana Elisa Gonçalves Bortolin
- 3 de set.
- 4 min de leitura
Introdução
“Não se faz outra coisa, em análise, senão falar de amor, suas dores e suas expectativas.” Essa frase de Jacques Lacan revela uma verdade fundamental da psicanálise: por trás de sintomas, angústias e conflitos, encontramos sempre histórias de amor. O amor não é visto aqui apenas no sentido romântico, mas como o conjunto de vínculos e experiências afetivas que moldam nossa subjetividade desde o nascimento. A análise se torna, assim, um espaço privilegiado para revisitar, compreender e transformar essas marcas emocionais.
Este artigo busca explorar como diferentes autores da psicanálise – Freud, Klein, Winnicott, Bion e Lacan – compreenderam o amor e sua importância na clínica, oferecendo ao leitor uma reflexão sensível, rigorosa e acessível.
Amor: Um Conceito Estruturante na Psicanálise
Freud destacou que a vida psíquica é essencialmente relacional. Em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), ele explica que os vínculos afetivos são a base tanto da construção do psiquismo quanto das relações sociais. O amor, assim como o ódio, não é apenas um sentimento, mas uma força estruturante, presente em todos os processos inconscientes.
Klein amplia essa perspectiva ao mostrar que as primeiras relações com a mãe (ou cuidador primário) são marcadas por intensos sentimentos ambivalentes: amor, gratidão, raiva e medo. Essas experiências precoces, segundo ela, formam os alicerces da personalidade e influenciam profundamente a capacidade de amar.
Winnicott acrescenta a importância de um ambiente confiável para o desenvolvimento saudável. Para ele, a presença de uma mãe suficientemente boa e de um espaço acolhedor ajuda a criança a experimentar o amor sem que este seja vivido apenas como ameaça ou frustração.
Lacan: O Amor Como Encontro de Faltas
Lacan nos convida a olhar o amor de forma complexa. Ele define o amor como “dar o que não se tem a alguém que não o é” (LACAN, 1998), destacando que amar envolve reconhecer a própria incompletude e aceitar a alteridade do outro. Esse conceito ressoa na clínica: o analista não oferece soluções prontas nem se coloca como alguém completo; ele sustenta um espaço de escuta em que o sujeito possa elaborar suas dores e expectativas amorosas.
A frase de Lacan aponta para o fato de que toda análise, em última instância, trata do amor: amor recebido, amor negado, amor idealizado. A psicanálise revela que nossos sintomas e escolhas de vida estão profundamente ligados ao modo como fomos amados e aprendemos a amar.
A Transferência: Revivendo o Amor no Setting Analítico
Um dos conceitos fundamentais para compreender o lugar do amor na psicanálise é a transferência. Freud explicou que, na análise, o paciente revive sentimentos direcionados a pessoas significativas do passado na relação com o analista. Esse fenômeno, longe de ser um obstáculo, é uma ferramenta terapêutica poderosa.
Quando o paciente projeta suas dores, expectativas e idealizações no analista, cria-se a oportunidade de revisitar essas experiências em um ambiente seguro. Essa vivência oferece a chance de ressignificação: o paciente passa a compreender a origem de seus padrões emocionais e a construir novas formas de se relacionar.
O Papel do Analista: Presença, Escuta e Acolhimento
Bion trouxe uma contribuição essencial ao descrever a postura do analista como uma atitude de atenção “sem memória e sem desejo”. Isso significa estar aberto à experiência do paciente sem tentar encaixá-la em interpretações prévias ou apressadas. Essa postura oferece ao paciente um espaço único para explorar suas emoções, sem pressão ou julgamento.
Winnicott também ressalta que o setting analítico deve funcionar como um ambiente confiável, onde o paciente se sinta seguro o suficiente para entrar em contato com partes de si mesmo que foram silenciadas. Essa confiança permite que a análise seja um processo de reencontro com a própria história emocional.
O Amor Como Caminho de Cura
Ao falar de amor, falamos também de cura. A análise não elimina o sofrimento humano, mas possibilita que ele seja compreendido e simbolizado. Ao revisitar experiências dolorosas e expectativas frustradas, o paciente constrói novas formas de lidar com os vínculos.
A psicanálise não busca ensinar a amar de uma única forma, mas ajudar cada sujeito a encontrar um caminho mais autêntico, menos preso a repetições inconscientes. Esse processo é libertador: ao reconhecer que o amor é marcado por falhas e ausências, o sujeito pode se apropriar de sua história, tornando-se mais livre para escolher como deseja se relacionar.
Conclusão
Falar de amor na psicanálise é falar de vida. É falar das marcas deixadas pelas relações, dos sonhos, das expectativas e das feridas que moldam quem somos. A frase de Lacan revela que a análise é, antes de tudo, uma experiência de escuta profunda: um espaço em que a palavra ganha lugar, a dor encontra sentido e o amor, mesmo em sua imperfeição, pode ser reinventado.
Esse olhar nos ajuda a compreender que o trabalho analítico não se limita a interpretar sintomas, mas a acolher a complexidade da experiência humana. Em última instância, analisar é aprender a amar com mais consciência, responsabilidade e liberdade.
Referências
BION, Wilfred R. Atenção e Interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1973.
FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XVIII.
KLEIN, Melanie. Amor, culpa e reparação. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, Jacques. Seminário, Livro 20: Mais, Ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.




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