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A Ternura que Cura: Ferenczi e a Escuta como Ato de Cuidado na Clínica Psicanalítica

  • Foto do escritor: Ana Elisa Gonçalves Bortolin
    Ana Elisa Gonçalves Bortolin
  • 29 de jul.
  • 3 min de leitura

Em um de seus textos mais profundos e corajosos, Confusão de línguas entre os adultos e a criança: o idioma da ternura e da paixão, Sándor Ferenczi afirma que “a ternura é, por vezes, mais terapêutica que a interpretação” (FERENCZI, 1992). Essa frase carrega uma mudança radical no modo de entender a clínica. Ao contrário do que muitos pensam, a psicanálise não se resume à técnica da interpretação. Ferenczi nos lembra que, especialmente nos casos marcados por trauma, é a experiência de cuidado, presença e respeito que pode abrir espaço para a verdadeira transformação psíquica.


Segundo o autor, a criança que busca o afeto de um adulto fala o “idioma da ternura”. Espera acolhimento, proteção, escuta. No entanto, quando encontra uma resposta que vem do “idioma da paixão” – invasiva, violenta, erotizada ou indiferente –, ocorre um rompimento interno. A criança não apenas é ferida, mas perde a confiança no vínculo, no próprio corpo e na linguagem. O trauma, assim, não é apenas o evento em si, mas o silêncio forçado que ele instala.


Ferenczi foi um dos primeiros psicanalistas a dar atenção às marcas do abuso real, e não apenas às fantasias inconscientes. Sua proposta clínica exigia um reposicionamento ético: o analista não deve ocupar um lugar de autoridade fria, mas oferecer uma presença viva, capaz de acolher a dor do outro sem repetir, ainda que simbolicamente, a violência que o paciente já viveu.




Ternura na clínica: o analista que não invade


Na prática clínica, o princípio da ternura aparece com frequência nos atendimentos de pacientes que passaram por experiências precoces de abandono, negligência ou abuso. São pessoas que, muitas vezes, desejam ser ouvidas, mas ainda não conseguem tolerar ser interpretadas. A escuta tradicional pode soar, nessas situações, como uma nova invasão.


Nesse contexto, o analista precisa sustentar o não saber, conter a ansiedade de intervir e respeitar o tempo do paciente. Isso não significa omissão, mas uma escuta ética que reconhece que o silêncio, o olhar acolhedor e a delicadeza têm função terapêutica real. Como diria Bion (1991), há momentos em que o analista precisa apenas “sofrer com” o paciente, sem buscar explicações prematuras.


Winnicott (1983) também reforça esse pensamento ao afirmar que o primeiro gesto terapêutico é o de “segurar”. Para ele, a segurança emocional que se dá através da presença é o alicerce sobre o qual o paciente pode, enfim, começar a simbolizar o que antes era vivido como caos.


A ternura, portanto, não é um enfeite da escuta. É parte essencial do manejo clínico quando se trata de acolher aquilo que ainda não encontrou palavras. É o que oferece um ambiente emocional confiável para que o paciente possa começar a existir no vínculo e, mais tarde, na linguagem.




A cura como experiência relacional


Ferenczi não está negando o valor da interpretação. Ele a reconhece como parte importante do processo analítico. No entanto, ele nos alerta: quando o sofrimento é profundo, a escuta precisa ser mais cuidadosa do que interpretativa. A transformação não se dá apenas porque algo foi dito, mas porque foi escutado com respeito. A cura começa quando o paciente se sente verdadeiramente recebido em sua dor.


Nos casos em que o trauma foi relacional, a cura também precisa ser. E é aí que a ternura entra como força clínica. Não como afeto desmedido, mas como ética do cuidado. É a decisão de não invadir. De estar com o outro, sem pressa, sem forçar, sem exigir.


Conclusão


Ferenczi nos oferece uma das maiores lições da psicanálise clínica: interpretar é importante, mas não basta. Há momentos em que o maior gesto terapêutico é a delicadeza. O respeito profundo pelo tempo do outro. A ternura silenciosa que sustenta o que ainda não pode ser dito.


Em uma época em que tanto se exige performance, velocidade e eficácia, escutar com ternura é também um ato de resistência. E de compromisso real com a humanidade de quem sofre.



📚 Referências bibliográficas


FERENCZI, Sándor. Confusão de línguas entre os adultos e a criança: o idioma da ternura e da paixão. In: Obras completas, vol. 4. São Paulo: Martins Fontes, 1992.


BION, Wilfred. Atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1991.


WINNICOTT, Donald W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.


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