
Adultização e Exploração Infantil na Internet: O Caso Felca, Impactos Psicológicos e a Visão da Psicanálise
- Ana Elisa Gonçalves Bortolin
- 16 de ago.
- 5 min de leitura
Em agosto de 2025, o youtuber Felca (Felipe Bressanim Pereira) publicou um vídeo que rapidamente ultrapassou dezenas de milhões de visualizações, expondo um problema alarmante: a adultização e a exploração de crianças nas redes sociais. O conteúdo revelou como pais, responsáveis e até empresas usam a imagem de menores para lucrar, expondo-os a comportamentos, roupas e situações que sexualizam a infância, de forma direta ou indireta, e como algoritmos das plataformas podem potencializar esse ciclo, chegando até redes de pedofilia.
O que Felca denunciou
No vídeo intitulado Adultização, Felca mostrou:
Perfis e canais com milhões de seguidores que expõem crianças em contextos sexualizados.
O chamado “algoritmo P”, que identifica o interesse em vídeos de menores e passa a recomendar mais conteúdos semelhantes, ampliando o alcance para públicos perigosos.
Casos de influenciadores já investigados pelo Ministério Público, envolvendo situações de exploração digital de menores.
A repercussão foi imediata. Contas foram deletadas, investigações foram abertas e o debate chegou ao Congresso Nacional.
Impacto jurídico e legislativo
Após a publicação do vídeo:
Trinta e dois projetos de lei foram protocolados na Câmara dos Deputados para reforçar a proteção de crianças e adolescentes na internet.
Um deles, conhecido como “Lei Felca” (PL 3852/25), propõe:
Criminalizar a adultização digital e a exploração sexual implícita de menores.
Proibir a monetização de conteúdos com menores em contextos de risco.
Responsabilizar pais, responsáveis e plataformas pela exposição prejudicial.
Obrigar transparência algorítmica para evitar que sistemas de recomendação direcionem conteúdos infantis a potenciais abusadores.
Os desafios da aplicação incluem a definição legal do que é “adultização” sem prejudicar produções legítimas e educativas, a regulamentação de plataformas estrangeiras que operam no Brasil e a criação de mecanismos técnicos para auditar e fiscalizar algoritmos em tempo real.
O olhar psicológico e clínico
Especialistas em psicologia do desenvolvimento, psicanálise e proteção infantil destacam que a questão envolve três camadas principais:
Adultização precoce: atribuir à criança comportamentos, roupas e falas típicas do universo adulto, antecipando fases do desenvolvimento e gerando confusão na construção da identidade e da sexualidade.
Infantilização erotizada: uso de estéticas e narrativas infantis misturadas com elementos sexualizados para atrair público. Embora pareça inocente, este recurso é identificado por predadores sexuais como estímulo.
Exploração emocional e econômica: exposição recorrente de momentos íntimos ou vulneráveis da criança para gerar engajamento, transformando o afeto familiar em um produto de consumo.
As consequências psíquicas possíveis incluem prejuízo na autoestima, distorção da noção de privacidade e do próprio corpo, aumento da vulnerabilidade a abusos e manipulações, além de impactos de longo prazo que podem se manifestar na vida adulta.
Transtornos que podem se desenvolver
Após passar por experiências de adultização, abuso ou exploração, especialmente quando praticadas por figuras de confiança, a criança pode desenvolver transtornos psíquicos e comportamentais como:
Relacionados ao trauma: Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), Transtorno de Estresse Agudo, Transtorno de Apego Reativo, Transtorno de Relacionamento Social Desinibido.
De humor: Depressão Maior, Distimia, Transtorno Bipolar.
De ansiedade: Transtorno de Ansiedade Generalizada, fobias específicas, Transtorno de Pânico, Mutismo Seletivo.
Dissociativos: Transtorno Dissociativo de Identidade, Amnésia Dissociativa, Despersonalização e Desrealização.
Alimentares: Anorexia Nervosa, Bulimia Nervosa, Transtorno da Compulsão Alimentar Periódica.
De comportamento e personalidade: Transtorno de Conduta, Transtorno Desafiador Opositivo, transtornos de personalidade (borderline, dependente, antissocial).
Relacionados a substâncias: abuso e dependência de álcool, drogas ilícitas ou medicamentos.
Sexuais: hipersexualidade, aversão sexual, anorgasmia, transtornos de dor genital, confusão na identidade de gênero ou orientação sexual por distorção no desenvolvimento psicossexual.
Outros sintomas: automutilação, comportamentos suicidas, somatizações, dificuldades de aprendizagem, desregulação emocional.
A visão da psicanálise sobre o trauma na infância
Freud mostrou que experiências sexuais precoces, mesmo sem contato físico, podem causar fixações psíquicas, alterar o desenvolvimento sexual e gerar sintomas neuróticos. Ele descreveu o trauma sexual infantil como um excesso de excitação que a criança não consegue processar.
Ferenczi explicou que a criança se comunica em uma “linguagem de afeto e brincadeira”, enquanto o adulto abusador impõe a “linguagem da paixão” (sexualidade adulta), gerando confusão psíquica, culpa e rompimento da confiança.
Melanie Klein destacou que o abuso rompe o ambiente interno seguro, ativando ansiedades persecutórias e defesas primitivas, comprometendo a simbolização e dificultando a integração emocional.
Winnicott introduziu o conceito de “ambiente suficientemente bom”. Quando violado, a criança pode criar um falso self para sobreviver, afastando-se de sua autenticidade. O trauma, para ele, é uma quebra na continuidade do ser.
Manejo clínico na psicanálise
O tratamento psicanalítico de vítimas de adultização e abuso infantil envolve:
Criação de um espaço seguro: setting protegido, previsível e estável.
Escuta sem julgamento: validação da experiência da vítima.
Respeito ao tempo do paciente: elaboração gradual do trauma.
Trabalho de simbolização: transformar memórias brutas em narrativas elaboradas.
Reconstrução da confiança e da autoestima: identificação e desconstrução de crenças de culpa, resgate do valor próprio.
Objetivos do tratamento psicanalítico
A psicanálise busca elaborar o trauma e integrá-lo à narrativa de vida, restaurar a capacidade de amar e confiar, reconstruir a identidade autêntica, ampliar recursos psíquicos para lidar com lembranças dolorosas e fortalecer a função simbólica para criar e projetar o futuro.
Prevenção
A prevenção da adultização e exploração infantil exige:
Evitar exposição de imagens de crianças em situações sexualizadas.
Respeitar a privacidade dos menores.
Configurar adequadamente redes sociais.
Denunciar conteúdos suspeitos.
Educar crianças sobre limites e segurança de forma adequada à idade.
Conclusão
O caso Felca evidenciou que a adultização e a exploração infantil na internet são problemas graves, amplificados por algoritmos, interesses econômicos e ausência de regulação eficaz. A psicanálise reforça que a infância necessita de proteção, afeto e um ambiente seguro para que o desenvolvimento ocorra de forma saudável. A terapia, especialmente quando iniciada precocemente, é fundamental para a recuperação e para a reconstrução de uma vida com integridade emocional.
📖 Referências
FELCA. Adultização [vídeo]. YouTube, 6 ago. 2025.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Denúncia sobre uso indevido de imagens de crianças motiva 32 projetos de lei. Brasília, 2025.
CNN Brasil. Vídeo de Felca: 5 pontos para entender debate sobre adultização de crianças. São Paulo, 2025.
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