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Criar é o primeiro passo da cura: arte, fantasia e clínica na visão de Freud

  • Foto do escritor: Ana Elisa Gonçalves Bortolin
    Ana Elisa Gonçalves Bortolin
  • 22 de jul.
  • 3 min de leitura

No texto O poeta e a fantasia, Freud nos convida a pensar a arte não como fuga da realidade, mas como uma forma legítima de reelaboração da vida psíquica. Publicado em 1908, esse ensaio apresenta a fantasia como ponte entre o mundo interno e o mundo externo, e o artista como aquele que não abandonou a capacidade de fantasiar. Apenas a transformou em algo compartilhável e criativo.


Para Freud, todos nós, na infância, somos poetas. As crianças constroem mundos imaginários o tempo todo, especialmente quando enfrentam frustrações. Elas brincam, dramatizam, criam histórias para processar sentimentos que ainda não sabem expressar com clareza. A fantasia, nesses casos, funciona como um mecanismo psíquico de elaboração, uma tentativa simbólica de organizar o que está em excesso.


Na vida adulta, essas fantasias não desaparecem. Elas continuam existindo em um nível inconsciente e, muitas vezes, se manifestam através dos sonhos, lapsos, sintomas e, em alguns casos, da arte. O artista, segundo Freud, é aquele sujeito que consegue dar forma estética a esses conteúdos internos, convertendo angústias e desejos em linguagem simbólica. Ele não foge da realidade, como muitos pensam. Pelo contrário, ele a recria a partir de sua verdade psíquica.


“O artista é, originalmente, alguém afastado da realidade, um sonhador. Mas ele sabe encontrar o caminho de volta a ela, sem abandonar a valorização das fantasias.”

(Freud, 1908/1996)



A fantasia como caminho entre o desejo e a criação



A fantasia, nesse contexto, não é algo patológico. Pelo contrário, é um recurso psíquico saudável, necessário à subjetivação. Quando ela é inibida ou reprimida, a vida psíquica empobrece. Quando é excessivamente invadida por fantasias não elaboradas, surgem os sintomas. O equilíbrio entre a realidade e a fantasia é, portanto, uma conquista do ego maduro.


A criação artística permite esse equilíbrio. O que antes era indizível agora ganha forma, contorno, imagem ou palavra. A arte, então, se torna um lugar possível para o desejo, uma forma de dar existência ao que antes era apenas uma ausência sentida.



A clínica como espaço de criação simbólica



Na clínica psicanalítica, vemos esse movimento com frequência. Pacientes que escrevem poemas, que desenham durante as sessões, que contam histórias “inventadas” ou falam de sonhos com forte carga imagética, muitas vezes estão fazendo uso da fantasia como instrumento de elaboração. Mesmo quando o conteúdo parece fantasioso ou absurdo, é preciso escutar com respeito e interesse. Ali, há verdade psíquica.


O analista, nesse cenário, não deve interromper a criação do paciente com interpretações precipitadas. Como orienta Bion, é necessário suspender a memória e o desejo, permitindo que o material inconsciente emerja sem interferência. O setting analítico precisa sustentar esse espaço simbólico, onde o paciente possa experimentar, imaginar e criar.


Criar é, muitas vezes, o primeiro passo da cura. Não porque resolve de imediato, mas porque organiza o caos. Porque transforma o sofrimento bruto em narrativa, em forma, em algo que pode ser olhado e elaborado.



A importância da arte no cuidado emocional



Em tempos em que o sofrimento psíquico se expressa de forma cada vez mais silenciosa ou através de sintomas difusos como ansiedade, insônia, desânimo e adoecimentos do corpo, reconhecer a função criativa da arte é essencial. Muitos sujeitos encontram na escrita, na pintura, na música ou mesmo no artesanato uma forma de respirar simbolicamente.


Winnicott, ao falar sobre o brincar e a criatividade, aproxima-se dessa visão. Ele afirma que a capacidade de criar está ligada à sensação de estar vivo de forma autêntica. E que a criatividade não se restringe aos artistas, mas é uma dimensão fundamental da experiência humana.


“É no brincar, e talvez apenas no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar a personalidade total.”

(Winnicott, 1971/2005)


A arte, portanto, não é luxo. É necessidade psíquica. E quando encontramos um espaço onde podemos ser criativos, fantasiosos, simbólicos, como na arte ou na análise, começamos a nos curar.



Conclusão: criar é resistir ao indizível



Freud nos ensinou que a fantasia é uma continuação do jogo infantil. E que a arte é um campo onde o sujeito pode, simbolicamente, reorganizar sua dor em algo comunicável.


Na clínica, acolher essa dimensão simbólica é uma forma ética de escutar o sofrimento. É permitir que o paciente crie narrativas, símbolos e imagens para, aos poucos, transformar aquilo que antes era apenas silêncio ou sintoma.


Criar é, enfim, dar uma forma à falta.

E isso, por si só, já é um potente gesto de cura.





📚 Referências bibliográficas



FREUD, Sigmund. O poeta e a fantasia (1908). In: FREUD, S. Obras Completas. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 2005.

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BION, Wilfred. Atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

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