Preta Gil e a serenidade diante da finitude: o que a psicanálise pode nos ensinar sobre viver depois da morte anunciada
- Ana Elisa Gonçalves Bortolin
- 23 de jul.
- 4 min de leitura
Na entrevista concedida ao programa Roda Viva, Preta Gil falou sobre a finitude com uma serenidade que tocou profundamente o público. Após enfrentar uma septicemia grave e ser ressuscitada por médicos, ela revelou uma experiência de quase morte que mudou radicalmente sua relação com o tempo, o corpo e a própria vida. Seu relato foi um convite sensível para pensarmos sobre o que fazemos com os dias que ainda temos.
A morte como mestre da vida
Na psicanálise, a finitude não é apenas um fato biológico. É uma experiência simbólica que nos atravessa e nos constitui. Desde Freud, compreendemos que o ser humano vive sob a tensão entre Eros (força vital) e Thanatos (impulso de morte). A consciência da morte é também o que torna a vida significativa. É ela que nos empurra à urgência do desejo, da realização, do afeto. Quando Preta Gil afirma que “depois que morre, a gente não volta para resolver nada”, ela nos lembra que adiar reconciliações, afetos e decisões pode ser um desperdício do tempo mais precioso: o agora.
“Quando você tem a morte te rondando, você entende a importância de resolver as coisas em vida.” – Preta Gil
A elaboração da morte como parte da vida nos obriga a ressignificar prioridades. Quantos de nós ainda vivem como se fossem eternos? Quantos permanecem congelados em ressentimentos, exigências ou orgulhos que nos afastam de quem amamos?
A escuta da experiência que atravessa o corpo
O adoecimento de Preta Gil não foi apenas físico. A septicemia, o câncer, a internação e o risco iminente de morte colocaram seu corpo como palco de uma travessia simbólica. Segundo o pensamento psicanalítico, o corpo adoece quando o psiquismo não consegue dar conta do excesso de dor ou conflito. O sofrimento que não encontra palavras encontra caminho no corpo. O que Preta viveu é, em muitos aspectos, uma cena traumática no sentido freudiano. Um acontecimento que escapa à simbolização imediata, mas que retorna como ponto de virada subjetiva.
“A doença nos obriga a parar. A vida vai dando sinais, mas a gente não escuta.” – Preta Gil
Essa pausa forçada nos confronta com o real do nosso desejo. O que ainda faz sentido? O que deixamos de viver por medo, culpa ou obediência a padrões que não são nossos?
Ressurreição simbólica e potência de vida
Na experiência relatada, Preta fala sobre o momento em que foi “ressuscitada”. Embora este termo tenha um valor médico, ele também pode ser lido simbolicamente. Ela renasceu para uma nova consciência de si. E esse “renascimento” não é raro entre pessoas que passam por doenças graves ou experiências de quase morte. Muitos relatam a sensação de um chamado para viver de modo mais autêntico, desapegado do que não importa e mais próximo da própria essência.
A psicanálise compreende esse movimento como uma reorganização do desejo. Quando as defesas psíquicas se desfazem diante da iminência do fim, algo do desejo mais profundo pode emergir.
“É preciso morrer simbolicamente para poder nascer de novo.” – Freud, em Luto e Melancolia (1917)
O convite: viva agora, resolva agora, ame agora
Preta Gil não fez da sua experiência uma vitimização. Pelo contrário, sua fala é um alerta ético e afetivo: o momento de viver é agora. A psicanálise, ao nos ajudar a resgatar a potência do desejo, também nos convida a deixar de adiar a vida. Esperar pelo momento certo, pela cura completa, pelo perdão do outro, pode ser uma forma de paralisia. E, como diria Lacan, o desejo é sempre desejo de algo que falta. Nunca teremos todas as respostas. Mas ainda temos tempo.
“Eu falei para o meu filho: ‘resolve tudo enquanto eu estou viva, porque depois que morre não tem mais o que fazer’.” – Preta Gil
Essa fala é um legado. Um chamado ao essencial. E na clínica, quantas vezes escutamos pacientes que se arrependem daquilo que não foi dito? Das visitas não feitas? Do amor não vivido?
Conclusão: a morte como aliada do desejo
Falar sobre a morte com serenidade é um ato de coragem. Preta Gil nos ensinou, com sua experiência, que não se trata de temer o fim, mas de fazer da finitude um motivo para viver com mais verdade. A psicanálise nos convida a não negar a morte, mas a integrá-la como parte da experiência humana. A angústia diante do fim pode ser transformada em impulso para o desejo, para o amor, para a reconciliação.
Afinal, como escreveu Freud:
“O objetivo da vida é a própria vida.”
(FREUD, S. O mal-estar na civilização. 1930)
E essa vida que ainda temos pode e deve ser vivida com presença, com entrega e com coragem de dizer o que precisa ser dito.
Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund. O poeta e a fantasia (1908). In: Obras completas. Vol. VI. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia (1917). In: Obras completas. Vol. XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930). In: Obras completas. Vol. XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
Roda Viva – Entrevista com Preta Gil. TV Cultura, 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/rodaviva (consultado em julho de 2025).





Comentários